Lei Maria da Penha – Ação Penal incondicionada à retratação da vítima

DECISÃO RECLAMAÇÃO. PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI N. 11.340/2006. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. DESRESPEITO À DECISÃO PROFERIDA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.424. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. Relatório 1. Reclamação, com requerimento de medida liminar, ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra ato do Juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP, que teria desrespeitado a autoridade das decisões proferidas por este Supremo Tribunal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424 e Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19. O caso 2. Em 5.9.2013, nos termos do art. 16 da Lei n. 11.340/2006, o juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP designou audiência na Ação Penal n. 0006023-30.2012.8.26.0587, ajuizada contra Gilson Eroles pela prática dos delitos previstos nos arts. 129, § 9º, do Código Penal e art. 5º, inc. I, e 7º, inc. I, da Lei 11.340/2006 (fl. 28, doc. 3). Em 14.11.2013, aquele juízo julgou extinta a punibilidade do acusado, em razão da retratação da vítima em audiência (fl. 30, doc. 3). É contra essa decisão que se ajuíza a presente reclamação. 3. O Reclamante sustenta, em síntese, que, nos autos da Ação Penal n. 0006023-30.2012.8.26.0587, a autoridade Reclamada teria declarado extinta a punibilidade de Gilson Eroles, com base no art. 107, inc. V, do Código Penal, pela renúncia à representação feita pela vítima, nos termos do art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em contrariedade ao que decidido por este Supremo Tribunal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424 e Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19. Ressalta ter assentado este Supremo Tribunal que as ações penais referentes à violência doméstica são públicas incondicionadas, o que inobservado pela autoridade Reclamada. Pede a procedência desta reclamação para cassar a decisão proferida na Ação Penal n. 0006023-30.2012.8.26.0587. 4. Em 13.1.2014, deferi a medida liminar requerida nesta ação para determinar a suspensão da decisão proferida pelo juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP na Ação Penal n. 0006023-30.2012.8.26.0587 (DJe 6.2.2014). 5. Em sua manifestação, após realçar a necessidade de se restabelecer a jurisprudência que lhe reconhecia a exclusiva legitimidade para atuar neste Supremo Tribunal, o Procurador-Geral da República opinou pela procedência da presente reclamação (doc. 10). Examinada a matéria posta à apreciação, DECIDO. 6. Registre-se, inicialmente, que o Reclamante dispõe de legitimidade para o ajuizamento da presente ação. Em 24.2.2011, ao julgar a Reclamação n. 7.358, o Plenário deste Supremo Tribunal, contra o meu voto e os votos da Ministra Ellen Gracie, Relatora, e dos Ministros Dias Toffoli e Joaquim Barbosa, reconheceu a legitimidade ativa autônoma do Ministério Público Estadual para ajuizar reclamação. 7. O que se põe em foco na presente reclamação é se, ao declarar a extinção da punibilidade de Gilson Eroles pela renúncia à representação feita pela vítima Maria Amélia Santos, o Juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP teria contrariado o que decidido por este Supremo Tribunal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19. 8. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424, Relator o Ministro Marco Aurélio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal atribuiu interpretação conforme à Constituição aos arts. 12, inc. I, 16 e 41 da Lei n. 11.340/2006 e assentou a natureza pública incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal: “O Plenário, por maioria, julgou procedente ação direta, proposta pelo Procurador Geral da República, para atribuir interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, I; 16 e 41, todos da Lei 11.340/2006, e assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. Preliminarmente, afastou-se alegação do Senado da República segundo a qual a ação direta seria imprópria, visto que a Constituição não versaria a natureza da ação penal — se pública incondicionada ou pública subordinada à representação da vítima. Haveria, conforme sustentado, violência reflexa, uma vez que a disciplina do tema estaria em normas infraconstitucionais. O Colegiado explicitou que a Constituição seria dotada de princípios implícitos e explícitos, e que caberia à Suprema Corte definir se a previsão normativa a submeter crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, em ambiente doméstico, ensejaria tratamento igualitário, consideradas as lesões provocadas em geral, bem como a necessidade de representação. Salientou-se a evocação do princípio explícito da dignidade humana, bem como do art. 226, § 8º, da CF. Frisou-se a grande repercussão do questionamento, no sentido de definir se haveria mecanismos capazes de inibir e coibir a violência no âmbito das relações familiares, no que a atuação estatal submeter-se-ia à vontade da vítima. No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico. Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Reputou-se que a legislação ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher — autora da representação — decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão” (Informativo n. 654, grifos nossos). Na mesma assentada, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19, Relator o Ministro Marco Aurélio, este Supremo Tribunal reconheceu a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006: “O Plenário julgou procedente ação declaratória, ajuizada pelo Presidente da República, para assentar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Inicialmente, demonstrou-se a existência de controvérsia judicial relevante acerca do tema, nos termos do art. 14, III, da Lei 9.868/99, tendo em conta o intenso debate instaurado sobre a constitucionalidade dos preceitos mencionados, mormente no que se refere aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, bem como à aplicação dos institutos contidos na Lei 9.099/95. No mérito, rememorou-se posicionamento da Corte que, ao julgar o HC 106212/MS (DJe de 13.6.2011), declarara a constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha (‘Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995’). Reiterou-se a ideia de que a aludida lei viera à balha para conferir efetividade ao art. 226, § 8º, da CF. Consignou-se que o dispositivo legal em comento coadunar-se-ia com o princípio da igualdade e atenderia à ordem jurídico-constitucional, no que concerne ao necessário combate ao desprezo às famílias, considerada a mulher como sua célula básica. Aplicou-se o mesmo raciocínio ao afirmar-se a constitucionalidade do art. 1º da aludida lei (‘Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar’). Asseverou-se que, ao criar mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher e estabelecer medidas especiais de proteção, assistência e punição, tomando como base o gênero da vítima, o legislador teria utilizado meio adequado e necessário para fomentar o fim traçado pelo referido preceito constitucional. Aduziu-se não ser desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, visto que a mulher seria eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado. Frisou-se que, na seara internacional, a Lei Maria da Penha seria harmônica com o que disposto no art. 7º, item ‘c’, da Convenção de Belém do Pará (‘Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: … c. incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis’) e com outros tratados ratificados pelo país. Sob o enfoque constitucional, consignou-se que a norma seria corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais. Sublinhou-se que a lei em comento representaria movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à justiça. Discorreu-se que, com o objetivo de proteger direitos fundamentais, à luz do princípio da igualdade, o legislador editara microssistemas próprios, a fim de conferir tratamento distinto e proteção especial a outros sujeitos de direito em situação de hipossuficiência, como o Estatuto do Idoso e o da Criança e do Adolescente – ECA. Reputou-se, por sua vez, que o art. 33 da lei em exame (‘Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente’) não ofenderia os artigos 96, I, a, e 125, § 1º, ambos da CF, porquanto a Lei Maria da Penha não implicara obrigação, mas faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme disposto nos artigos 14, caput, e 29, do mesmo diploma. Lembrou-se não ser inédita no ordenamento jurídico pátrio a elaboração de sugestão, mediante lei federal, para criação de órgãos jurisdicionais especializados em âmbito estadual. Citou-se, como exemplo, o art. 145 do ECA e o art. 70 do Estatuto do Idoso. Ressurtiu-se incumbir privativamente à União a disciplina do direito processual, nos termos do art. 22, I, da CF, de modo que ela poderia editar normas que influenciassem a atuação dos órgãos jurisdicionais locais. Concluiu-se que, por meio do referido art. 33, a Lei Maria da Penha não criaria varas judiciais, não definiria limites de comarcas e não estabeleceria o número de magistrados a serem alocados nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Apenas facultaria a criação desses juizados e atribuiria ao juízo da vara criminal a competência cumulativa de ações cíveis e criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, haja vista a necessidade de conferir tratamento uniforme, especializado e célere, em todo território nacional, às causas sobre a matéria” (Informativo n. 654). 9. Na espécie vertente, o juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP extinguiu a punibilidade de Gilson Eroles por ter a vítima, Maria Amélia Santos, renunciado à representação feita contra o agressor, procedimento incompatível com a natureza incondicionada da ação penal em foco. Assim, a autoridade Reclamada desrespeitou a autoridade vinculante das decisões proferidas por este Supremo Tribunal nas Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19. Em casos análogos ao presente, nos quais se inobservou a natureza pública incondicionada de ações penais instauradas para apurar a crimes praticados contra a mulher em ambiente domiciliar ou familiar, os Ministros deste Supremo Tribunal têm julgado procedentes as ações, sendo exemplos disso as seguintes decisões monocráticas: Rcl 15.711, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe 20.6.2013; Rcl 15.192, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe 3.6.2013; Rcl 14.845, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe 14.5.2013; Rcl 15.441, Relator o Ministro Gimar Mendes, DJe 14.5.2013; e Rcl 15.309, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe 26.3.2013. 10. Pelo exposto, julgo procedente a presente reclamação para cassar a decisão pela qual o juízo da Vara Criminal da Comarca de São Sebastião/SP julgou extinta a punibilidade de Gilson Eroles, na Ação Penal n. 0006023-30.2012.8.26.0587 e determinar o prosseguimento da ação, na forma da lei. Publique-se. Brasília, 14 de março de 2014. Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora

(Rcl 17025, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 14/03/2014, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 18/03/2014 PUBLIC 19/03/2014)

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